Joisa Dutra
Professora da FGV EPGE e diretora do FGV CERI

Gustavo Kaercher Loureiro
Pesquisador associado do FGV CERI

Acontecimentos recentes do cenário internacional – recuperação da China, eleição de Joe Biden e o ambicioso pacote de estímulos europeu para uma retomada verde (U$2,2 trilhões) – terão consequências importantes para o ritmo e a forma da transição energética no mundo e demandam agilidade nas reformas aqui. Com impacto sobre o setor elétrico, o final de 2020 trazia elevada expectativa de aprovação no Congresso da Medida Provisória 998/2020 e da reforma do gás; contudo, essas iniciativas escorregaram para a segunda metade do mandato do Presidente Bolsonaro, junto com a reforma do setor (PLS 232/2016) e a capitalização da Eletrobras. Apesar dos esforços de modernização iniciados em 2016, ainda há um grande ausente dos movimentos de reforma do setor elétrico: a governança das instituições setoriais. Nesse artigo começamos a abordar o tema sob a perspectiva do papel do Operador Nacional do Sistema – o ONS.

Na arquitetura institucional do setor elétrico, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) ocupa um papel fundamental, não apenas pelos eventos recentes que o envolveram – o apagão recente no estado do Amapá e a mudança nas regras operativas das usinas do rio São Francisco, com seu impacto extemporâneo na formação de preços – como por suas funções e competências, estabelecidas ainda no final da década de 90 do século passado (artigo 13 da Lei no 9.648/1998). Não obstante algumas modificações, a governança do ONS pouco evoluiu desde então. E muitas questões ainda restam em aberto. Um tema crucial que vem à tona e se repropõe a cada apagão ou disfunção do Sistema Interligado Nacional (SIN) é a disciplina ou regime jurídico a que se sujeita o Operador. Sob que circunstâncias e condições se pode considerar o ONS responsável (accountable) no exercício de suas funções? Em direito, costuma-se separar dois modos completamente diferentes de responsabilização, aquele em que se responde com “culpa” (responsabilidade “subjetiva”) e aquele em que se responde mesmo sem “culpa” (responsabilidade “objetiva”). Não dá para explicar aqui a diferença entre uma coisa e outra. Fique o leitor com isto: no primeiro caso, o lesado precisa provar, além de tudo o mais, também uma propriedade específica da conduta do sujeito: o fazer desleixado ou temerário. No segundo caso, da responsabilidade objetiva – regime a que estão submetidos, por exemplo, os concessionários de serviços públicos, por força do artigo 37, § 6o da Constituição – é mais fácil apontar o dedo na direção do responsável, porque esse requisito sai do checklist. A diferença pode parecer abstrata, mas o impacto dela na hora de decidir quem paga o pato é enorme. A que tipo de responsabilidade o ONS está sujeito, subjetiva ou objetiva? A questão não é simples. Passados quase 25 anos de sua criação, a carteira de identidade jurídica do ONS continua sendo um mistério. Quando alguma bronca mais complicada surge, a etiqueta setorial propõe uma saída à francesa bem educada que formula generalidades tão fáceis de enunciar quanto inúteis. Começou com o STF que falou do ONS como uma “entidade sui generis” (ADIs 3100-DF e 3.101-DF) e se perpetua, toda vez que se afirma, sem muito pensar, que o ONS é um “ente híbrido”, um “sujeito atípico” etc. O Operador pode ser tudo isso, mas é preciso ir além de fórmulas ou etiquetas vazias. Pouco adianta dizer pomposamente, que “o ONS é uma pessoa jurídica de direito privado, associação civil sem fins lucrativos, dotada de mera autorização de polícia e submetida ao regime de direito privado com pontuais derrogações de direito público”. Além de complicada, a fórmula é insuficiente. Essa resposta – que sugere um regime de responsabilidade de tipo tradicional, subjetivo – até pode estar certa, mas ela precisa de fundamentos.

Quais as competências?

A legislação estabelece que o ONS é a tal associação civil etc., mas não é porque a lei assim o declara que tudo se resolve e esclarece. Há boas razões para ir além dessa solução simples. Algumas dessas razões estão ligadas às atividades do operador (suas competências), outras à sua configuração subjetiva (composição, estrutura, papel do poder público em sua governança etc.). Primeiro elemento que nos faz pensar: a principal competência do ONS, a operação do Sistema Interligado Nacional (SIN), tal como configurada nas normas setoriais (artigo 13 da Lei no 9.648/1998), faz parte do cerne da indústria elétrica. Ela não é tarefa coadjuvante dessa indústria. Cabe ao Operador do Sistema coordenar a operação do sistema elétrico. Partindo de um arcabouço com firmas verticalmente integradas, introduzir competição e entrada nos mercados de eletricidade depende da garantia de livre acesso às redes de transmissão (e distribuição) mediante termos e condições estabelecidos em contratos, e sob premissas de isonomia, neutralidade e eficiência. Com o passar do tempo, no Brasil – ou seja, com a integração dos sistemas e com a complexidade que essa integração trazia – a operação do sistema ganhou autonomia orgânica. E ganhou essa autonomia justamente porque mais se fazia necessária à indústria. Esse movimento de especialização é típico: num passado remoto, só tínhamos a usina; depois a usina e a rede; depois, a usina, as linhas de transmissão e as linhas de distribuição; hoje, temos tudo isso e mais a comercialização e a operação do sistema. A operação só se desprendeu completamente das fases de geração e transmissão quando ganhou autonomia jurídica, caracterizada pelo seu isolamento e atribuição a um sujeito específico (Lei no 9.648/1998). Mas a ordem dos fatores não altera o produto: a operação do sistema resta sendo um “serviço de energia” (artigo 21, XII, b da Constituição). Aliás, permita-se o tom peremptório: não é um mas, é o serviço de energia. Vale lembrar: sem a operação do sistema não existe, fisicamente, energia para o consumidor (agentes individuais podem cair, o operador não). E, além disso, a operação do sistema é economicamente determinante para o setor, sobretudo porque, através de uma cadeia de modelos técnico-econômicos, ela determina a ordem de mérito das usinas (sequência dos recursos de geração que serão acionados para atender à demanda) que irão gerar energia; é dali que sai o custo marginal de operação, origem do preço no mercado de curto prazo; a geração fora da ordem de mérito, por restrições de transmissão localizadas no SIN ou para promover segurança energética; e a prestação dos serviços ao sistema (além de produzir energia elétrica, os geradores prestam outros serviços essenciais para garantir a necessária estabilidade do SIN em tempo contínuo) etc. Em síntese, é o ONS que concretamente atua os ideais de segurança energética e elétrica do Sistema Interligado Nacional, dos quais todo o resto depende. Diferentemente do que se passa com a maior parte dos outros agentes do setor elétrico, as atividades do ONS alcançam a todos. O operador se relaciona com o universo dos sujeitos – geradores, transmissores, distribuidores e consumidores – conectados ao sistema. O raio de sua ação é transversal e geral. E mais: na operação em tempo real, o ONS é soberano, ou em linguagem mais seca, o ONS é um monopolista (sim: monopolista, não natural, por razões econômicas, mas por razões técnicas: não dá para ter dois sujeitos pressionando os mesmos botões numa mesma região elétrica). Ou seja: a operação do sistema é atividade de coordenação realmente importante. Ela é tão importante, única e de largo alcance que – também à diferença do que se passa com a maior parte dos outros agentes do setor – está pautada por princípios e exigências não encontrados em quaisquer outras funções da indústria – mesmo aquelas qualificadas como serviços públicos. Esses princípios e exigências muito a aproximam de uma típica função pública (lato sensu): transparência, isonomia, neutralidade técnica e ausência de intuito lucrativo (ninguém está afirmando que lucro é feio ou coisa parecida; só se está mostrando como a tarefa de operação do sistema é crucial e crítica, a ponto de interessar ao sistema, mais do que ao seu executor). Em resumo, a operação do sistema (especialmente como concebida no Brasil) está no cerne dos serviços de energia elétrica e, por isso mesmo, é regida por normas que sequer se encontram na prestação dos individuais serviços públicos. Se passamos da competência mor do ONS às demais que lhe foram atribuídas (pela Lei no 9.648/1998, Lei no 10.848/2004 e Decreto no 5.081/2004), o panorama não muda. Pense-se na relevância e nos princípios jurídicos que regem a figura do livre acesso; no papel do ONS para o planejamento da expansão do sistema. Nada disso é coadjuvante no funcionamento do setor; nada disso é atividade de livre iniciativa; tudo isso está severamente regulado, disciplinado e fiscalizado (assim se espera). Tudo isso tem uma dimensão sistêmica e condominial.

Erro de avaliação

Deixando de lado o exame das competências e ingressando na análise de sua estrutura (governança em sentido estrito), o panorama não muda: o ONS não é um “simples privado”, como fazem crer os rótulos de “associação civil”, de “autorizatário” etc. Essas etiquetas poderiam levar um incauto profissional do direito a pensar que estamos, afinal, no plano extrassetorial, do Código Civil, das “meras” atividades econômicas. Mas mesmo que se queira – erradamente – dar mais peso às questões formais, de qualificação e estrutura da pessoa do operador, em detrimento do que ele efetivamente faz, é bom ter cuidado: a solene declaração de que o ONS é a tal associação civil etc. vem desmentida pelo que acontece depois. Associação civil que precisa de autorização (artigo 13, caput da Lei no 9.648/1998)? Isso não contraria o artigo 5o , inciso XVIII da Constituição? Para fugir do óbvio (que infelizmente não salta aos olhos): a autorização não é para a criação da associação, é para que ela possa exercitar uma tarefa que é um típico serviço de energia reservado à União. Não é um ato certificador de polícia (artigo 170, parágrafo único da Constituição); é um título para realizar uma atividade reservada (artigo 21, XII, b da Constituição). Que o conferimento da honraria seja dado por ato unilateral e não por negócio jurídico (contrato de concessão), muda pouco. Aliás, muda alguma coisa: aproxima o ONS de uma estatal, que tem suas funções atribuídas por lei antes que por contrato. Mais perto dessa conclusão se chega quando entra em linha de consideração o modo como a tal associação civil é concebida: nenhum espaço à autonomia da vontade é reconhecido a seus would be fundadores e membros. Tudo, mas absolutamente tudo, é predeterminado pela regulação: composição, estrutura, mecanismos de deliberação, governança etc. Todas essas coisas, no detalhe, estão no Decreto no 5.081/2004 e na REA Aneel 328/2004. Ora, que associação civil é essa que, além de exercitar tarefa reservada à União (por meio de uma autorização), ainda é detalhadamente organizada por atos estatais? Associado se é não porque se quer, mas porque alguém manda ser; e se é nos termos e limites em que o Estado manda. De novo: nem concessionários de serviço público são tão cabresteados. Não fosse suficiente, a reforma de 2003 que instituiu o modelo vigente alterou as prerrogativas do poder público no âmbito da governança. Nos termos do artigo 7o do Decreto no 5.081/2004, o Ministério de Minas e Energia (MME) passou a indicar três dos cinco membros da diretoria, incluindo o diretor geral. Concluindo e exagerando, mas nem tanto: sob o ponto de vista da atividade, o ONS realiza o “serviço dos serviços” de energia elétrica – a coordenação do sistema elétrico; sob o ponto de vista de sua personalidade e estrutura, o ONS lembra uma estatal. Sujeita-se a um vasto cabedal de regulação: sobre o que se faz e sobre o que se é. Do Congresso (leis), da Presidência da República (decretos), do Ministério de Minas e Energia (portarias), da ANEEL (resoluções) e por aí vai. Há razões de sobra para achar que o ONS não é um sujeito qualquer. E que sua responsabilidade no desempenho de tão importantes missões não é tão diferente daquela que incide sobre o Estado e seus delegados. Pode parecer filigrana, mas não é: esse tema é central para o avanço das reformas que tramitam no Congresso para o setor elétrico. Ainda que se trate de mero executor e não formulador de políticas públicas, sua governança – forma como é administrado e como administra suas relações com o amplo conjunto de agentes do setor elétrico – deve ser revisitada e adaptada para acompanhar e facilitar a modernização do setor elétrico. À discussão.

 

Revista Conjuntura Econômica

Necessária revisão da governança no setor elétrico: parte I – ONS

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